quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Vamos estar considerando sobre o GERUNDISMO - Parte I

Imagem: http://www.letramagna.com/anteriores5.htm

Por Sírio Possenti (UNICAMP)*

Todos os defensores da língua pura, em todos os lugares (jornais, revistas, colunas, programas de TV), estão criticando uma locução verbal supostamente nova que apareceu e se espalhou. Ficou conhecida como gerundismo, o que é, talvez, o primeiro equívoco. Como quase sempre, especialmente quando se trata de língua, esses críticos misturam alhos com bugalhos, são incapazes da mais mísera análise que não possam copiar de uma apostila.

Parte I

Minha atenção para o chamado gerundismo foi despertada há algum tempo pelos que imaginam que tudo aquilo de que eles não gostam é necessariamente ruim ou errado. O que mais se ouve são reações quase histéricas (“mau gosto, fere os ouvidos, não desce”) ou explicações fajutas (“é importação descarada do inglês, macaqueação” – o que desconsidera o fato crucial de que os principais usuários de “gerundismo” não sabem inglês, não lêem inglês, não ouvem inglês, nem viajam aos países de fala inglesa, nem vão a Miami…). Por isso, acho que vale a pena olhar o fenômeno também de outros ângulos, ou mais de perto.

Para começar, eu diria que, se os puristas não gostam, deve ser interessante. Se, além disso, acham que a construção não serve para nada, alguma serventia deve ter.

Em quase tudo, as novidades são índice de qualidade. Mas, ao que tudo indica, quando se trata de língua, só valem as formas antigas (nem tanto, na verdade, porque esses puristas em geral não vão além de um século de literatura).

Bom fazer uma distinção crucial: uma coisa é alguém gostar ou não de uma construção nova qualquer. Outra é achar que não é português ou que não serve para nada. Em geral, juízos assim denotam falta de análise.

Vou tentar mostrar que não há quase nada de estranho nessa forma tão criticada. Que ela não é tão esquisita , e que, quando é, as razões disso nunca foram aventadas pelos sábios de plantão. Trata-se de uma análise evidentemente preliminar, não exaustiva.

Primeiro, uma apresentação. Tem-se chamado de gerundismo a construções como vou estar enviando meu trabalho, vamos estar providenciando seu cartão, vou estar dando aula. O nome, evidentemente, se deve ao uso da forma verbal em –ndo, um gerúndio. Gerundismo seria a proliferação de uso (inadequado?) do gerúndio.

Considere-se primeiro a sintaxe da construção. A ordem dos verbos auxiliares é perfeitamente canônica. Sabe-se que eles vêm sempre antes do principal (como em vou sair). Se houver mais de um auxiliar na mesma construção, haverá ordens permitidas e outras proibidas (tenho estado viajando, mas não *estive tendo viajado; vou estar saindo, mas não *estarei indo sair).

Além disso, cada auxiliar pede que o verbo seguinte tenha uma forma específica, ou melhor, não aceita qualquer forma do verbo seguinte. Assim, o verbo ir pede um infinitivo: vou sair, mas não *vou saído. O verbo estar pede gerúndio (ou particípio): estar dormindo, estar vestido, mas não *estar dormir.

Em resumo, a tal construção está em perfeito acordo com a sintaxe do português: sua ordem é ir + estar + ndo. Portanto, do ponto de vista estritamente sintático, não há nada demais com o chamado gerundismo. Sua estrutura é perfeitamente regular: cada verbo está na posição e na forma em que estaria se, ao invés de aparecer numa trinca, aparecesse numa dupla (vou sair, vou estar, estou dormindo, estar dormindo).

Vejamos agora o que a construção significa. Os que não gostam dela dizem que não serve para nada, que há outra melhor para expressar “a mesma coisa” (eles não são nada sutis). Ao invés de vou estar mandando, alegam, por que não dizer logo vou mandar, ou mandarei? Mas estão errados. Pode ser que nem todos os casos sejam claros, mas, geralmente, a forma com estar + gerúndio veicula um aspecto durativo, ou seja, expressa um evento que não é instantâneo.

Para que a menção de “aspecto durativo” não pareça estranha, relembre-se que o imperfeito do indicativo, uma forma bem conhecida, apresenta esse mesmo efeito de sentido: formas verbais como amanhecia e pintava referem-se a eventos ou ações que não são instantâneas, que têm alguma duração.

Ora, não só os morfemas (desinências) verbais indicam aspecto: às vezes, ele faz parte da semântica da própria palavra. Por exemplo, dormir, estudar (no sentido de ‘fazer um curso’, como em estudar medicina), morar (em uma cidade) são durativos. Estar também é durativo: é um verbo de estado, de estado transitório (lembre-se da famosa frase de Eduardo Portela: não sou ministro, estou ministro), mas de estado.

Nem todos os verbos são durativos, evidentemente: enviar, providenciar, decidir, entre centenas de outros, não o são (e nenhum dicionário informa…). Se não considerarmos o aspecto dos verbos, não entenderemos por que um caso de “gerundismo” pode ser normal e outro não.

É por causa do tal aspecto durativo que não é a mesma coisa dizer vou dormir e vou estar dormindo . A diferença está exatamente entre ir (que marca só futuro) e ir + estar (que marca futuro, por causa de ir, e “duração”, por causa de estar). Uma informação como vou estar providenciando, que ouvimos eventualmente da empresa de cujos serviços estamos reclamando, significa, entre outras coisas, que a providência não será instantânea...

Além disso, e essa é outra questão, o compromisso expresso em vou providenciar é mais incisivo do que em vou estar providenciando. Mais ou menos como é mais incisivo dizer providenciarei do que dizer vou providenciar. Apelo para a intuição do leitor: não é a mesma coisa dizer haveremos de vencer e venceremos, venceremos e vamos vencer; assim como não é a mesma coisa dizer vamos vencer e vamos estar vencendo.

Além desses dois, há outro efeito de sentido importante, agora de cunho pragmático ou interpessoal. A construção gerundiva conota gentileza, formalidade, deferência (se verdadeira ou simulada, não importa). Ou seja: bem ou mal, mesmo que se trate de postergar um serviço urgente, deve-se reconhecer que a recusa, pelo menos, é expressa de forma não grosseira (nem mesmo franca, de fato). Suponhamos que seja verdade que o fenômeno começou a se espalhar a partir do telemarketing. Isso só confirmaria a análise. A qual categoria interessa mais ser ou parecer gentil? De quebra, a fórmula é também menos comprometedora: se uma empresa diz que entregará, você pode esperar pelo produto; se disser que vai entregar, duvide um pouco; mas se disser que vai estar entregando, desista…

Além dos aspectos acima, seria certamente interessante investigar se a enorme aceitação desta nova locução não se deve a uma cultura da falta de compromisso, que, eu acho, caracteriza nossa sociedade atualmente. Não seria a primeira vez que se pode estabelecer uma relação estreita entre um aspecto da língua e um traço de cultura ou de ideologia.

Assim, pode-se pensar qualquer coisa desse tipo de expressão, exceto: a) que não serve para nada, já que expressa aspecto (da ação), é sinal de deferência, pois se trata de uma fórmula gentil, e talvez seja um indício revelador de um traço de nossa cultura atual; b) que é simples, que é bobo. De fato, como vimos, é algo bastante complexo. É necessária uma enorme sofisticação para dar conta da sintaxe da locução e para empregá-la na hora certa.

Os argumentos acima poderiam ser suficientes para calar a boca dos que simplesmente dizem que gerundismo não é português, que é de mau gosto etc. Mas há outras questões interessantes a serem consideradas, que mostram que aquelas afirmações são fruto de análises fajutas.

Considerando outros  ados, pode-se mostrar que o problema não é, de fato, o gerúndio, ou seja, que o fenômeno nem deveria ser chamado de “gerundismo”, se houvesse maior precisão. O que causa reação é a construção que envolve o verbo estar seguindo outro verbo auxiliar (em geral, ir). Ou seja, para que a construção seja renegada, é preciso que ela tenha a forma ir + estar + gerúndio. Observe-se que, em tese, nada obriga a chamar a isso de gerundismo.

Mas vejam-se outros fatos. Tenho certeza de que ninguém reclamaria de construções como está trabalhando, ficou viajando, andou descansando, continuou espiando, nem mesmo de diverte-se esquiando ou trabalha cantando, apesar dos gerúndios. Assim, se os críticos quisessem ser mais exatos, deveriam chamar o fenômeno de “estarismo”…

Mas isso deveria significar que não há nada de estranho no dito gerundismo? Também não é assim. Há dois problemas, a meu ver. Um diz respeito a eventual incompatibilidade entre o sentido durativo do verbo estar e a ausência de tal sentido no verbo principal. Ou seja, se a construção estar + gerúndio incluir um verbo com o traço de duração ou de processo em seu sentido, ela será perfeitamente normal. É que, se estar é um verbo auxiliar durativo, só pode(ria) ocorrer com verbos durativos. Ocorrendo com outros, o resultado causa estranheza, é uma espécie de paradoxo. É por isso que vou estar morando em S. Paulo não é uma construção estranha, mas vamos estar enviando seu novo cartão é. A explicação é que morar é durativo e enviar não.

Essa parece uma análise mais adequada do fenômeno. Resumo: existem formas gerundivas não problemáticas. Elas incluem um traço de duração (do ponto de vista semântico) e um traço de gentileza (com efeitos sobre a qualidade da relação pretendida entre os interlocutores). O fenômeno, localizado, estende-se para os casos em que não há traço durativo, provavelmente como efeito da pretensão (não necessariamente consciente) ou da coerção profissional para falar gentilmente.

A outra razão para o gerundismo parecer um “vício” é que o número de ocorrências é realmente grande. A meu ver, mais do que ser correto ou não, o gerundismo é chato (e tem que ver, eu acho, com falta de compromisso).

É por isso que, acima, insisti na necessidade de distinguir o gosto em relação a uma construção do fato de ela ser ou não “correta”. Por exemplo, eu odeio olá galera! e é muita adrenalina!, expressões que se ouvem centenas de vezes na mesma conversa ou no mesmo programa de TV. Mas não posso dizer que são construções erradas. Mas como são chatas, meu Deus!

*Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.

Para ler a Parte II, clique aqui.

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