[Texto publicado em 05/03/2009]
Sírio Possenti*
De Campinas (SP)
Por causa do carnaval, de um congresso, de um pouco de preguiça, mas também porque certas coisas não devem ser esquecidas, republico um texto antigo, de meados da década de 90 do século passado. É que, de vez em quando, esse papo de que Lula fala errado volta à cena, ora nos blogs de comentaristas políticos, ora em insinuações de FHC, como ocorreu recentemente. Segue o texto:
Vêm aí as eleições presidenciais. Pessoalmente, não vejo problema em suportar o horário político na TV. Pior será aguentar de novo alguns sabidões dizendo - com pose de quem sabe do que está falando - que não se pode votar em determinado candidato porque tem pouca escolaridade ou, pior, pelo fato de que não sabe nem falar. Há alguns dias, até o Enéas, aquele da fala rápida e ideias fascistas, disse que acha que há um candidato, que a imprensa elogia muito, que não sabe expressar-se adequadamente, falando ou por escrito. Aliás, ele pensa que é um modelo de sabedoria linguística, quando qualquer estudioso de linguagem identificaria nele um indivíduo que tenta, através de um estilo antiquado (o último exemplar desse comportamento foi Jânio, mas certamente com outros propósitos e com competência infinitamente maior), esconder uma origem da qual se envergonha. É um exemplo ambulante de hipercorreção, ou seja, de inadequação linguística. No debate promovido pela TV Manchete, apenas para dar um exemplo, em três falas disse três vezes a palavra "primacial". Deve ter consultado um dicionário de sinônimos antes do debate.
Certamente, o discurso dos candidatos é um dos sintomas pelos quais podemos julgá-los. Mas também para isso também se exigem critérios. No mínimo, critérios tão claros quanto os utilizados para julgá-los em qualquer outro campo. E Enéas não é o único a emitir juízos superficiais ou equivocados sobre linguagem. É raro, mesmo entre os intelectuais, que haja domínio dos instrumentos necessários para avaliar certos aspectos da linguagem dos candidatos, sem preconceitos (pró ou contra).
Mesmo jornalistas, que vivem da linguagem e se revelam curiosos em relação a numerosos outros campos, utilizam-se às vezes de critérios de avaliação linguística muito primários. Vou dar um exemplo, com dados antigos, mas que, certamente, continua válido (inclusive porque dados do mesmo tipo continuam ocorrendo; aliás, com mais de um candidato, embora só se anotem os fatos quando ocorrem com um deles).
O jornal Folha de S. Paulo de 3 de agosto de 1990, na página 8 do caderno A, sob o título PALANQUE, abaixo da fotografia de Luiz Inácio Lula da Silva, publicou uma citação e um comentário. A citação é parte da fala de Lula no programa eleitoral do candidato de seu partido ao governo do Estado de São Paulo, fala levada ao ar na véspera. O comentário é anônimo, e talvez possa ser atribuído a Nelson de Sá, que assina a reportagem na qual PALANQUE é uma espécie de Box. A citação é:
"É importante que a gente saiba que as eleições é muito importante, porque as eleições pode fazer com que a gente possa escolher pessoas que tenham compromisso com a maioria do povo brasileiro".
O comentário é:
"Lula caprichou na sua volta à TV. Livre da obrigação de ser eleito, sentiu-se livre também de respeitar a língua portuguesa. Inaugurou - com todo o conhecido estilo - a temporada de atentados à regência verbal".
O que a Folha fez em agosto de 1990, os jornais fizeram quase diariamente no ano anterior, durante a campanha presidencial. Além de discutirem as propostas dos candidatos, ora com maior, ora com menor profundidade e discernimento, opinavam às vezes sobre a própria forma da linguagem, a gramática dos candidatos. E surpreenderam neles alguns dos chamados erros de português. Coisas de pouca importância, tratadas com observações quase amadoras, como as referentes às orações relativas do candidato ruralista Caiado, que nelas denunciava sua identidade rural.
A imprensa foi quase incapaz de perceber as numerosas construções em tópico-comentário da maioria dos candidatos, provavelmente porque elas já fazem parte da própria gramática dos jornalistas, apesar de estas construções terem estrutura semelhante, quando não igual, aos combatidos anacolutos, o que confirma a ideia de que a mesma construção linguística é avaliada de maneira diferente, segundo seu usuário. A ideia pode ser resumida assim: figura de linguagem de aluno - ou "ignorante" em geral - é vício, e vício de linguagem de gente fina é figura. Se a imprensa noticiou "erros" de todos os candidatos, e se divertiu com isso, foi em relação ao candidato Lula que ela ficou mais atenta, e a expressão "menas maracutaia" foi citada com alta frequência, como se fosse a característica mais relevante de seu discurso.
Mas, vejamos um pouco mais de perto a fala de Lula, em agosto de 1990: qualquer mestre-escola cuidadoso e sem preconceitos perceberia em seu texto duas construções não padrões (qualificadas normalmente de erradas): as eleições é e as eleições pode. Lembro que estava vendo o programa e que ouvi a primeira destas formas - não tenho certeza de ter ouvido a segunda (mas não seria de espantar que um ouvido atento, predisposto, ouvisse demais ou de menos) - e imaginei que Lula não seria perdoado por tê-la usado.
O comentarista do jornal destaca estas formas, que denunciam claramente a origem social do referido político: ele é um operário que não frequentou a escola por muito tempo, e o uso de tais construções denuncia claramente pessoas pouco escolarizadas. Qualquer investigação sobre o português do Brasil mostrará que a ausência de concordância verbal é uma das características mais evidentes da fala não culta ou mesmo informal.
A falta de instrução escolar que este tipo de linguagem denuncia é grave num candidato? Depende muito do que se espera do candidato. Durante a campanha presidencial de 88, houve quem achasse que Collor era um candidato melhor porque pelo menos não envergonharia o Brasil nos banquetes oficiais, por ser polido e poliglota. Queremos presidentes ou chefes de cerimonial, bons em etiqueta?
Consideremos, porém, outros aspectos da fala de Lula: observe-se a ocorrência de com que a gente possa e pessoas que tenham. Lula usa variavelmente a regra de concordância. Isto é, não é verdade, como se poderia pensar, que ele nunca aplica tal regra. Além disso, usa até mesmo o subjuntivo, forma em desaparecimento na fala de muitas pessoas - a denunciar talvez uma tendência de nossa língua - e evidente marca de formalidade, ou, se se quiser, da fala de pessoas instruídas.
Quem consultar algum manual de sociolinguística verá que Lula se comporta como qualquer dos falantes investigados em vários países: quando há uma regra variável (isto é, que ora produz uma certa marca, como a concordância, ora não), ele a aplica variavelmente (isto é, ora faz a concordância, ora não). O que esta fala denuncia em Lula é sua identidade social. Assim como a fala de Jânio denunciava mais que qualquer outra coisa seu arcaísmo (como é certamente o caso de Enéas, agora), assim se reconhece na fala de Lula sua origem de classe ou sua classe de origem.
Agora, analisemos o comentário do jornalista: primeiro, revela total desconhecimento de critérios pelos quais poderia entender o que ocorre na fala de Lula e o que isso significa efetivamente. Faltam critérios mínimos de análise de linguagem. Além disso, mesmo pelos sofríveis critérios que adota, o jornalista comete um erro grosseiro em seu comentário. Em sua análise é que ocorre efetivamente um erro, pelo critério que o próprio jornalista invoca e supostamente conhece e considera implicitamente que qualquer pessoa "competente" deveria conhecer.
Ele diz que Lula "inaugurou ... a temporada de atentados à regência verbal". Nenhum jornalista, que estuda um número razoável de anos na escola, bem mais do que Lula estudou, tendo numerosas pessoas e livros à disposição para consultar, mesmo na redação do jornal em que trabalha, e tendo à disposição o tempo que a escrita permite (mesmo ao jornalista), ao contrário do improviso da oralidade, como foi o caso de Lula, poderia cometer o engano que este comete: confundir regência com concordância. Na fala de Lula, seu estilo denota sua origem, na escrita do jornalista, seu erro denota, agora sim, uma certa incompetência.
Certamente, trata-se de falta de competência numa questão irrelevante, tão irrelevante que ele pode ser jornalista, talvez excelente, sem conhecê-lo, mas trata-se de efetiva ignorância. O que torna o fato grave não é a ignorância gramatical do jornalista, mas o fato de que foi uma tentativa de utilizar um conhecimento que é distribuído por critérios de classe como arma contra aquilo que o jornalista pretendeu que fosse a prova cabal da ignorância de Lula.
Mas o erro maior não foi confundir concordância com regência. Erro maior foi o jornalista escrever que Lula se sentiu livre de respeitar a língua portuguesa - uma forma de dizer que ele não segue regras do português em sua fala: se fala errado não fala português, se não fala português não fala língua nenhuma, então não fala, não sabe falar. Ora, isso é bem mais grave do que dizer de alguém que fala uma variedade inculta, ou popular, ou regional de uma língua qualquer. Não é preciso ser lingüista ou cientista para saber que falas diferentes são dialetos, e não fala nenhuma.
Fazer uma análise lingüística com critérios ruins equivale a fazer jornalismo com release, isto é, péssimo jornalismo. Por que se procuram fontes diversas para avaliar opiniões políticas, econômicas, morais, e não se buscam critérios diversos para analisar fatos de linguagem?
*Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.
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