quinta-feira, 26 de maio de 2011

O dicionário das empregadas domésticas

Por Urariano Motta

Nos últimos dias, na gente mais educada causou espécie, para não dizer causou urticária, o livro didático  “Por uma vida melhor”, que ensinaria a falar errado. No entanto, ninguém se levantou, nem perdeu a paz de espírito, quando um ilustre desembargador, faz alguns anos,  achou por bem escrever um dicionário para as empregadas domésticas. É fato.

Atropelos e apelos de títulos não faltaram ao ilustre dicionarista. Erudito em Direito Civil, filiado à Associação Paulista dos Magistrados, escritor de verve, ele assim gracejou em artigo no  jornal dos seus pares:

“Ele  ligou para sua  própria  casa. A  empregada era nova. Ele não a conhecia. Sua mulher, a Esther, digo (ou ele  diz), dona Esther, tinha  acabado  de contratar. A moça era do norte. De Garanhuns. Nada contra, mas....sabe como é. Nós, brasileiros, sabemos! O patrão morava num  sobrado. O telefone da residência ficava num nicho, embaixo da escada. No décimo segundo toque a Adamacena, a tal da empregada, atendeu: ‘Alonso!’ Na dúvida, o dono da casa perguntou: ‘De  onde falam?’ Ao que a Adamacena respondeu: ‘Debaixo da escada!’ Foi aí que ele começou a catalogar as expressões da serviçal...”

Na continuação do texto, para melhor diálogo com as inferiores, o preclaro e excelso organizou este pequeno dicionário das empregadas, para ser lido pelas classes cultas, do  gênero e classe dele no Brasil:

Denduforno - dentro do forno
Dôdistongo -  dor de estômago
Doidimai -  doido demais
Dôsitamu -  dor de estômago
Gáscabô -   o gás acabou
Iscodidente -  escova de ente
Issokipómoiá  - isto aqui pode molhar
Ládoncovim — lá de onde que eu vim
Lidialcom -  litro de álcool
Lidileite -  litro de leite
Mardufigo -  mal do fígado
Mastumate -  massa de tomate
Nossinhora -  nossa senhora
Óikichero -  olha que cheiro
Óiprocevê -  olha pra você ver
Óiuchêro -  olha o cheiro
Oncotô -  onde que eu estou
Onquié -  onde que é
Onquitá - onde está

Etc. etc. etc. poderia ser a leitura geral das “palavras” coligidas pelo senhor dicionarista. Se ele fosse um homem culto de facto, e não um culto de fato, fato da toga que um dia vestiu,  saberia que as diversas falas de uma língua não significam uma superioridade cultural, civilizacional,  de uma fala sobre a outra. Ora, as pessoas que vêm do interior do Nordeste, e é a elas que a sua brincadeira de mau gosto se referiu, os brutos migrantes dos sertões nordestinos carregavam, além da miséria, uma gramática que é uma história da língua. Quando eles dizem “figo”, em lugar de “fígado”, ou “hay”, em lugar de “há”, ou “in riba”, em lugar de “em cima”, ou mesmo “joga no mato”, por “deixa fora, joga fora”, essas palavras, esses modos e conteúdos de fala não nasceram de uma carne, sangue e lugar inferiores.

Esses cortes de sílabas, esse “denduforno” em lugar de “dentro do forno”, esse corte de fonemas na fala de todos os dias, essa aglutinação é um procedimento comum em todas as falas, do Norte ao Sul do mundo, do Leste ao Oeste do planeta, em todas as classes e gentes e tempos. Diz-se até que é uma obediência à lei do menor esforço. Quem é bom de ouvido sabe que a última sílaba de uma palavra em uma frase não se ouve, adivinha-se pelo sentido. Um “Como vai de saúde?”, sai quase como um “Como vai de saú?”. Se os ingleses transformam consoantes de palavras em vogais, bravo, isso é mesmo um fenômeno linguístico. Se os norte-americanos pegam os tês e põem em seu lugar erres, isso só pode mesmo ser inglês moderno. Bravo.

No Brasil, na região que move a economia, quando um paulista insiste em pronunciar “record” à inglesa, mas com erres à brasileira, ou quando pronuncia “meni”, em lugar de “menu”, está apenas no exercício da sua cultura poliglota. Aplausos. Quando ele, no bar, pede um só, mas ainda assim pede “um chopes”, é uma graça. Viva. Mas um “oxente”, um “arretado”, que traem e trazem a marca da fala de nordestinos, desses baianos, desses nortistas, ah, isto só pode mesmo ser uma prova insofismável de subdesenvolvimento.

Isso comentamos à margem, do texto do léxico das empregadas e da grande mídia. Mas o pequeno dicionário para as empregadinhas não sofreu qualquer indignação patriótica, lembramos bem. Faz sentido, enfim. Como dizia Marx, ao lembrar as diferentes traduções de classe, os proletários se embriagam no bar, os burgueses vão ao club.


2 comentários:

Rejane disse...

Eu completo afirmando que "a ignorância é que astravanca o progresso". E aí não estou me referindo à "suposta" ignorância das pessoas de origem nortista ou nordestina, ou mesmo das pessoas de origem pobre de qualquer lugar. Refiro-me à ignorância dos engomadinhos. Veja bem: ensinei em turmas do fundamental I e tinha uma aluno que, toda vez que eu me punha em frente ao quadro e que ele queria copiar alguma coisa que estava escrito lá e nao conseguia porque eu estava na frente, ele dizia, assim como todas as crianças da turma: com licência professora. Eu afirmava que quando eles dissessem com licença eu sairia da frente. Mas depois, conversando com um linguista da UFPE, espanhol, ele afirmou que muitas palavras do português arcaico tem sua origem no espanhol. E com licencia é como os espanhóis pedem licença. Assim mesmo podemos fundamentar o fato de se falar hay em lugar de há, estão também fazendo uso do português arcaico influenciado pelo espanhol. Afinal, como se diz há em espanhol: hay.
Existe uma pesquisa realizada pelos linguistas aqui da federal que foi publicada pela Revista Veja há alguns anos atrás com o título Nobre como Camões. Muitas vezes usei essa reportagem em minhas salas de aula que de Língua Portuguesa ou de Metodologia da Língua Portuguesa, ou ainda em capacitações de professores do Ensino Fundamental I, porque ela evidenciava, através da pesquisa, que muitas formas de se falar em comunidades remotas, rurais, assim como em comunidades em que vivem pessoas de menor poder aquisitivo, tinha origem no português arcaico, aquele mesmo português muitas vezes tão aclamado quando quem o escrevia era Camões. O problema é que, essas comunidades, especialmente as rurais, vivendo muito afastadas de outras comunidades urbanas em que a língua evolui muito, ficam presas a esses termos vindos lá de trás, lá do século XIX. E aí nós os tachamos de falar errado. Quer contradição maior do que esta?

Profdiafonso disse...

Olá, Rejane.

Grato pelo esclarecedor comentário.

Grande abraço!

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