Observadora contumaz da língua em uso, Maria Cecília Lopes, doutora em Tradução e mestre em Linguística Aplicada pela PUC-SP, viu os últimos acontecimentos internacionais que vieram à tona com os vazamentos de telegramas da diplomacia americana pelo WikiLeaks por um viés que faz parte de seu cotidiano.
Acostumada a traduzir textos, analisar e estudar palavras, Maria Cecília percebeu que o termo vazamento estava mudando de conceito. À primeira vista foi intuição, mas depois constatou, ao examinar cerca de 550 ocorrências dessa palavra em matérias jornalísticas, que ladeada por outras de cunho negativo, vazamento, por consequência, também passa a ter essa conotação. “A gente está passando por um momento de mudança ou pelo menos de outros sentidos para uma palavra que até então não tinha toda essa carga negativa”, afirma. O fato é que “a primeira questão da discussão é como a gente vai traduzir Leak e como o nosso cliente quer que esse Leak seja traduzido.” Pertencente a uma situação particular, todo texto tem um objetivo, uma ideia e ideologia a transmitir. Depois do WikiLeaks “a discussão para o uso desta palavra e sua tradução tem de ser maior”, já que todo texto se utiliza de recursos estilísticos para dar determinada ênfase e efeito no ato da leitura.
Acostumada a traduzir textos, analisar e estudar palavras, Maria Cecília percebeu que o termo vazamento estava mudando de conceito. À primeira vista foi intuição, mas depois constatou, ao examinar cerca de 550 ocorrências dessa palavra em matérias jornalísticas, que ladeada por outras de cunho negativo, vazamento, por consequência, também passa a ter essa conotação. “A gente está passando por um momento de mudança ou pelo menos de outros sentidos para uma palavra que até então não tinha toda essa carga negativa”, afirma. O fato é que “a primeira questão da discussão é como a gente vai traduzir Leak e como o nosso cliente quer que esse Leak seja traduzido.” Pertencente a uma situação particular, todo texto tem um objetivo, uma ideia e ideologia a transmitir. Depois do WikiLeaks “a discussão para o uso desta palavra e sua tradução tem de ser maior”, já que todo texto se utiliza de recursos estilísticos para dar determinada ênfase e efeito no ato da leitura.
CartaCapital: Como percebeu que o significado da palavra vazamento está mudando?
Maria Cecília Lopes: Primeiro foi uma questão intuitiva, de perceber que havia algo acontecendo com a palavra vazamento e depois, fui olhar no corpus [banco de dados linguísticos que reúne ocorrências de uma mesma palavra no uso cotidiano] e a palavra vazamento normalmente é acompanhada de vazamento de alguma coisa e aí você tem a relação com uma informação, com uma notícia. A forma como WikiLeaks lida com esse aspecto é diferente, ele não vaza uma informação, ele vaza milhares. Então é o que eu disse brincando, já não é um vazamento, é uma enxurrada. Na Guerra Fria você tinha um, vamos dizer, agente que descobria um segredo e levava para o outro lado, esse segredo era revelado e não se falava em vazamento. Hoje em dia você tem vários segredos e eles não são revelados porque eles são usados como vazamentos, então é uma mistura do que era segredo revelado e para o que é hoje em dia telegrama vazado e não é só um, são vários.
CC: A palavra vazamento não era usada?
MCL: Na época usavam revealed, showed. Essa coisa do Leak é muito usado em jornalismo, em inglês também, mas pelo que percebi, tanto no inglês quanto no português, você tinha o Leaked de uma notícia, de uma informação e não essa abundância. Porque o WikiLeaks não faz só um vazamento. É uma abundância que aparecem aí a torto e a direito e seja o que Deus quiser. Fazendo uma analogia metafórica, você tem uma vazamento na sua casa. É um cano que estoura e traz a água para a sua casa. Se você tiver um vazamento na sua casa como é no WikiLeaks vai ser um estourar de canos para tudo quanto é lado e a sua casa foi embora. É uma inundação de informações. É por isso que acho interessante como a palavra vazamento muda. Essa quantidade de informações que a gente tem agora no WikiLeaks não é só um vazamento é uma enxurrada, é uma inundação.
CC: Essa é a discussão entre os tradutores?
MCL: A discussão é do ponto de vista de tradução jornalística, que apesar de ser usada a palavra vazamento há outras em uso para dar a mesma ideia. De algumas semanas para cá eu fiz uma coleta de textos do que têm sido publicados. Vejo que alguns órgãos de imprensa usam outras palavras, talvez para dar uma conotação menos negativa. Porque, querendo ou não, parece que vazar vai dar uma conotação de algo ruim. Eu observei o uso frequente das palavras divulgar e informar. Então a primeira questão da discussão é como a gente vai traduzir Leak e como o nosso cliente quer que esse Leak seja traduzido. E para isso tem de se fazer uma discussão maior porque, afinal de contas, nós temos a palavra vazar, mas ela tem uma prosódia semântica negativa, um sentido negativo, pelo menos o que eu percebi em corpora até agora. Parece que os jornais preferem usar outras palavras além de vazamento para dar um pouco menos de peso para a coisa. Então usam divulgar, informar. Talvez, num outro momento, só para voltar a sua pergunta: a gente traduziria Leak por vazamento e não haveria essa abundância de informações e haveria um peso menor para essa palavra. Eu já li em jornais de São Paulo que o WikiLeaks passa notícia.
Mas aí também tem uma ideologia por trás. Porque para muitos o WikiLeaks não está fazendo nada de mal. Aliás, o nosso presidente da República defendeu o WikiLeaks e a liberdade de expressão.
CC: Como confirmar a prosódia semântica de carga negativa?
MCL: O que eu faço é verificar quais palavras estão ao redor daquelas e que sentido aquilo dá para a palavra vazamento. Um exemplo de uma frase: por causa do vazamento eu chamei o encanador. Ou: o vazamento da notícia resultou numa guerra. Primeiro são contextos diferentes, um é literal o outro é metafórico, que, aliás, é outra história e tem muita metáfora com água, veja tem furo de reportagem, tem furo do cano. Metáforas que seguem a palavra vazamento. Quando eu pego a palavra vazamento no contexto jornalístico e se eu for observar essas palavras que estão ao redor dela, são palavras que dão uma conotação negativa, uma coloração ruim. Eu examinei até agora cerca de 550 ocorrências da palavra vazamento e são muitas coisas ruins. Muita coisa no sentido de consequências do vazamento como prisão, perda de cargo. Outro exemplo: fulano vazou a notícia e perdeu o cargo. Talvez valesse a pena alguém falar divulgar até para não ter essa prosódia semântica. Pode haver uma relação com a questão de estilo do jornal, a editorial pede para não repetir determinada palavra.
CC: Você sugere alguns conceitos para os vazamentos do WikiLeaks.
MCL: Num primeiro momento vejo três aspectos para o sentido de vazamento recentemente usado com o advento do WikiLeaks: fofoca, confirmação daquilo que já era senso comum e quebra de dados sigilosos. O que está sendo vazado? Você tem algumas coisas ali que talvez em outro momento poderiam ser encontradas num tipo de revista de notícia de jornal muito mais como aspecto engraçado necessariamente com aspecto tão sério como tem sido levado. Vou dar um exemplo dessas últimas notícias. O fato de um presidente X e um primeiro-ministro Y terem sido chamados de Batman e Robin para mim isso não muda nada e simplesmente dão um ar engraçado que talvez eu encontraria numa piada, num bate-papo informal ou numa revista de fofoca. Não tem um caráter tão absurdo. É claro que tem coisas que são pertinentes e preocupantes como a questão nuclear. Mas tem certas coisas que a gente já sabia, já imaginava, enfim não podia confirmar. E a Diplomacia foi feita para divulgar informações. Tem um pouco de galhofa, daquilo que o embaixador acha de determinado fato. Porque tem diferença entre o que é um fato do que ele acha. Um embaixador americano escreveu que achava que o Brasil lidava com a questão do terrorismo de forma tal. Ele não provou nada. É a opinião dele colocada no telegrama e que acabou vazando. Acho que existe um exagero de determinadas coisas que são vazadas pelo WikiLeaks e há certas coisas que realmente que precisam ser pensadas de maneira mais séria, mas tudo está colocado no mesmo patamar pela mídia. Algumas das coisas que nós tivemos em excesso não imaginávamos que a diplomacia fala que fulano é assim ou assado, como o tratamento dado à presidente da Argentina. Isso me lembra fofoca. Eu gosto de ler o jornal e ter alguma coisa nova. Tem certos documentos que se divulgam ou vazam que não trazem nada de novo. Talvez deixe os ânimos por 24, 48 horas mais exaltados. Eu vou dar importância para alguma coisa que eu não sabia e que pode mudar a minha vida. Isso tem a ver com o dinamismo da internet. É muita informação e pouca reflexão.
CC: O que pode surgir de toda essa discussão?
MCL: Na melhor das hipóteses nos vamos ter uma nova visão sobre o que é vazar uma notícia. A palavra talvez continue sendo usada e eu tenho a impressão de que a carga semântica negativa deve aumentar com esse caso porque a palavra vazamento a partir de dezembro de 2010 vai aparecer com coisas negativas. E não é preciso fazer muita pesquisa para perceber que de duas semanas para cá há uma frequência do uso da palavra vazamento com coisas ruins. Você tem a questão da prisão do Julian Assange que já está envolvendo a questão de estupro. Questão de pessoas perseguindo. Mas é para que a gente tome certos cuidados a partir de hoje porque no fundo a gente está passando por um momento de mudança ou pelo menos de outros sentidos para uma palavra que até então não tinha toda essa carga semântica. É interessante, e é para isso que a linguística e linguística de corpus, estão aí para fazermos uma investigação da língua em uso. E o pessoal do jornalismo deve aprender a usar essa palavra porque é uma palavra importante. Eu estava falando da metáfora, olha só: tem vazamento você tem as fontes, é tudo de água. Então o problema não é o dono do WikiLeaks, mas as fontes, o cara que chegou na embaixada X pegou o documento e passou. O Assange divulgou. Quem é o criminoso aí? Isso se houver um crime. Tem gente que acredita que a divulgação, a liberdade de expressão deve haver e essa coisa dos segredos precisa ser revista. A língua é assim o uso e não uso leva a determinados sentidos de uma palavra que podem ser alterados ou não pelo uso.
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